Os últimos 20 dias foram cheios de
análises políticas tentando compreender quem saia às ruas, quais eram
suas principais reivindicações e tantas outras perguntas tão novas
quanto o momento que surgia. Enquanto alguns articulistas buscavam
respostas nos fundadores do pensamento brasileiro, outros procuravam na
corrupção ou no nosso sistema político.
No calor do momento é difícil refletir o que se tem passado no
Brasil. As análises, muitas vezes parciais e incompletas, tentam buscar
as peças desse novo quebra-cabeça que nem os mais proeminentes políticos
conseguiram prever. Apesar dessa dificuldade, a necessidade de produzir
reflexões neste momento se torna fundamental, exatamente para poder
intervir de maneira contundente num tempo em que multidões tomam as ruas
e a história se acelera.
Por isso gostaria de levantar alguns pontos a serem refletidos sobre a
nossa realidade que tratará muito menos de especificidades do Brasil e
mais de fatores que tem percorrido as revoltas e protestos iniciados em
2011 ao redor do mundo, principalmente sob cinco eixos relevantes:
Internet e imagens, Rupturas no regime, Refundação da nação, Democracia e
Internacionalismo.
Nos ater à forma que se deu e como se encaminhou os protestos ao
redor do globo nos ajudará a entender melhor como se desenvolve o nosso
levante juvenil e popular. Nota-se que a forma como os eixos se dão em
cada caso não é igual, pois a realidade política, cultural e econômica
de cada país faz com que estes pontos a serem destacados se desenvolvam
de forma desigual e combinada em cada um dos processos.
Internet e as imagens
Muito já tem se falado da internet. A organização das manifestações, a
horizontalidade, o potencial das redes sociais para contra-informação
das mídias tradicionais, a velocidade da informação e o lastro de
solidariedade. Gostaria de tratar sobre as imagens, algo que se
transformou em central na divulgação por estes meios.
A imagem da menina de vermelho sendo reprimida com spray de pimenta já dizia tudo o que se passava na Turquia, a foto de
Khaled Said
torturado se transformou num dos símbolos da revolução egípcia, as
chamas no entorno do corpo de Mohamed Bouazizi foi o estopim da
revolução tunisiana. No Brasil não foi diferente. A brutalidade que a
polícia usou na repressão aos jovens no dia 13 Junho em São Paulo, foi
marcado pela foto da jornalista da
Folha atingida por uma bala de borracha no olho e a de um casal sendo agredido no ponto de ônibus.
O que todas essas imagens têm em comum, além de cenas fortes com
algum grau de violência, é a mistura de um protesto pacífico e uma
reivindicação justa. Esta iconografia, disseminada rapidamente pela
internet, nos faz de imediato escolher um lado, e mais, nos identificar
com a luta do oprimido.
Por outro lado, os vídeos de limpeza e o cuidado com o espaço público (como visto em Tahrir ou em Puerta del Sol) e mesmo a organização e união nos “Occupys”, reafirmam mais do que nunca este sentimento de solidariedade.
O número de celulares e câmeras nos atos do Egito não era menor do
que nas passeatas brasileiras. Mais do que uma necessidade de
contra-informação, o que leva os jovens a produzir estas imagens é a
possibilidade de divulgar a mensagem pela rede. Vídeos que mostravam
manifestantes gritando “Sem Violência”, no Brasil, ou “Selmeya”
(sem violência) no Egito, sendo agredidos pelo autoritarismo do
Estatal, mostram um pouco da crise social que vive cada uma destas
sociedades.
A velocidade da informação hoje, pede alternativas rápidas. E é ai
que entram as imagens-símbolo. As mesmas que serão compartilhadas aos
milhares e que permitirão a passagem da informação muito mais rápido do
que, por exemplo, um texto.
Afinal como diz o ditado, uma imagem diz mais que mil palavras.
Rupturas no regime
Nas ditaduras, a incapacidade do regime em absorver as mudanças e as
ondas de violência, faz com que problemas econômicos ou democráticos se
transformem rapidamente em anti-regime. Nas democracias com “eleições
limpas” e regulares (como na Europa ou no Brasil) a crítica atinge
diretamente o sistema representativo.
Os políticos profissionais e seus partidos são os primeiros a serem
atingidos com a insatisfação da população. A alternância no poder de
diversas siglas aplicando programas muito similares com um claro
distanciamento dos anseios populares, junto à corrupção, negociatas e
manobras tudo para gerenciar a máquina do Estado e repartir privilégios
faz com que esta crise se agrave.
É esta partidocracia (termo cunhado pelos espanhóis) que fez com que
os brasileiros expressassem o desgaste da política partidária nas ruas,
em forma de rechaço às bandeiras.
A segunda ruptura com o regime é a econômica, catalizada pelo
enfrentamento ao capital financeiro. Ela se dá especialmente na Europa e
ganha seus contorno no combate à Troika (Comissão Europeia, Banco
Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) com sua política de
austeridade e retirada de direitos.
Estas rupturas tiveram como resultado nos regimes democráticos a
alternância, desgaste da situação e fortalecimento da oposição. Podemos
destacar a derrota gritante do PSOE, os sociais-democratas espanhóis nas
eleições em 2011, e a criação de alternativas anti-regime, como o
humorista Grillo, na Itália, ou a esquerda radical, como o Syriza no caso grego.
A queda livre na qual se encontra a aprovação do governo Dilma nas
pesquisas é um bom indicativo dessa tendência, que provavelmente deve
ser seguida pelos governos estaduais e municipais.
Por fim é importante destacar que apesar dos indicadores econômicos
terem piorado, a crise econômica não atingiu de forma contundente o
Brasil. Esta característica faz com que os políticos brasileiros ainda
tenham margem para tentar satisfazer as ruas.
Refundação da nação
Na Turquia, um mar de bandeiras vermelhas cobriram Esmirna, no Egito
uma bandeira gigante foi estendida em Tahrir, na Líbia os rebeldes
trouxeram de volta sua bandeira original. Aqui no Brasil os
neo-carapintadas também carregam a bandeira do país e cantam hinos em
quase todas as passeatas.
O que todos têm em comum? Um sentimento de refundar a nação.
Seja a necessidade da construção de um NOVO Egito, ou o retorno do
kemalismo na Turquia, também são recheadas destes ideais. Mesmo na
Europa o fortalecimento dos nacionalismos na Galiza, Catalunha e no País
Basco, ou à necessidade de uma nova independência na Grécia estão
ligados à ideia de repensar a nação.
Esta construção se dá de diferentes formas em cada região. No
mediterrâneo europeu este nacionalismo se dá no combate ao imperialismo
alemão, enquanto no mundo árabe é a conquista de democracia e direitos.
No Brasil o resgate da bandeira se dá no questionamento do sistema
corrupto e nos gastos inapropriados dos governantes.
Apesar de esta ideia ter características progressivas, a exemplo da
luta anti-imperialista e da busca de justiça e liberdade, também abre
espaço para grupos conservadores e de extrema direita atuarem, como o
caso da Aurora Dourada, na Grécia, ou alguns pequenos grupos de
ultranacionalistas no Brasil.
Democracia
Este eixo é a toada da onda de levantes mundo a fora. As próprias
convocatórias por meio das redes sociais, a ausência de carros de som, a
disseminação de vários focos e a horizontalidade do movimento já é um
fator chave para se discutir a democracia em todos esses processos. Até
mesmo a necessidade de combinar as mais diversas demandas e massificar o
processo só é possível pela força da diversidade que essas novas formas
de organização conseguem agregar.
A democracia é apresentada com inúmeras facetas: a representativa
“tradicional” contra regimes autoritários, a incorporação das ditas
minorias (mulheres, negros, indígenas, minorias religiosas e étnicas), a
transparência como combate à corrupção na política e nos negócios, o
poder de participação na decisão dos gastos públicos e até mesmo pela
necessidade de se incorporar novas formas de democracia que avancem além
dos pleitos partidários e eleitorais.
Da derrubada dos ditadores no mundo Árabe à “Democracia Real” da
Europa, a necessidade de questionar o controle, dos meios de comunicação
ou do Estado, e exaltar a participação direta nos processos de decisão
são elementos centrais.
No Brasil bandeiras como “Fora Rede Globo”, desmilitarização da
polícia e a necessidade de colocar a pauta de novas formas de democracia
suprapartidária são elementos importantes que indicam a importância
deste eixo.
Internacionalismo
Após a queda de Mubarak, em 11 de fevereiro de 2011 no Egito,
diversos vídeos saudavam seus irmãos Tunisianos que mostraram o caminho.
A superexposição do processo egípcio fez com que o seu modelo se
espalhasse na dimensão e na velocidade das redes. As bandeiras da Líbia,
Tunísia, Síria e Egito estavam presentes por todo mundo árabe. A
solidariedade com o povo palestino é outra característica presente da
revolução tunisiana, em 2011, ao levante Turco deste ano.
Tahrir se transformou em Puerta del Sol, em Madrid, ou os inúmeros Occupys
nos Estados Unidos. As páginas de solidariedade nas redes e os
protestos na frente das embaixadas ao redor do mundo também deram outra
cara neste movimento internacional. Assim como Wall Street e o mercado financeiro se transformaram em alvos nos EUA e na Europa do mediterrâneo.
A luta anti-imperialista também tomou fortes contornos, seja pela
guerra injustificada no Iraque e Afeganistão no mundo Árabe e no próprio
Estados Unidos, ou o imperialismo alemão por toda a Europa,
especialmente na região do Euro.
No Brasil, apesar de menos gritante, este aspecto se destaca pelo
enfrentamento à FIFA (exatamente no país do futebol) ou nas inúmeras
citações de solidariedade a outros países nos cartazes. De maneira mais
lateral a questão dos leilões das bacias petrolíferas e aos banqueiros
também têm o seu espaço.
Marcas permanentes
Quase cinco anos depois do primeiro levante grego é que o Syriza se
tornou alternativa real para seu povo. Dois anos depois da queda da
ditadura de Mubarak é que o povo volta às ruas exigindo de volta seus
sonhos roubados pelos militares e pela Irmandade Muçulmana. O povo
português está há quase dois anos nas ruas para que o Bloco de Esquerda
passe a polarizar o país.
É a primeira vez depois do processo de redemocratização e o “Fora
Collor” que o Brasil passa a ver manifestações de dezenas de milhares de
pessoas. É a primeira vez na Nova República em que o movimento de
massas não tem como referência o Partido dos Trabalhadores ou os
partidos tradicionais. Tempos de ousar.
As vitórias nas ruas fizeram o jogo virar. Longe de ser o fim, este é
o começo de um novo momento para o Brasil. Hoje em dia milhares de
jovens estão se formando na luta de classes, centenas de novas
lideranças estão sendo criadas por inúmeras cidades de nosso país. No
momento em que as referências do PT, PSDB, PSB, PCdoB, PSDB, PMDB entre
outras estão se dissolvendo, cabe à esquerda radical e consequente
apresentar uma alternativa, organizando cada vez mais jovens e
trabalhadores em suas fileiras. O governo e economistas tradicionais já
apontam uma crise econômica mais intensa no horizonte. As fissuras estão
se abrindo. É tempo de práxis neste novo mundo que se apresenta.
Frederico Henriques é professor e militante do PSOL/RN.
Fonte: Fundação Lauro Campos